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Um conto dos tempos do JAZZ

“CLEMENTINE BAKER E O MISTERIOSO CASO DO GALEÃO DE OURO”

    O ano era 1930 e o cenário o centro boêmio da cidade do Rio de Janeiro. Fazia frio naquela noite, alguns finos pingos de chuva traziam seu distante murmúrio e perolavam as ruas sob a luz dos letreiros de neón. As pessoas caminhavam apressadas, envoltas em seus agasalhos, sob os guarda-chuvas, ansiosas por chegar em casa. O cabaré, localizado na Rua Hilzéquio de Queiroz número 412, já havia encerrado seu expediente. O letreiro luminoso com as suas características letras garrafais já dava suas últimas piscadas. Logo, o velho bilheteiro do local, chamado Vespúcio, apagaria totalmente as luzes. Tudo havia ficado quieto e silencioso, a fumaça ainda flutuava no ar e o perfume das mulheres se misturava com o da cerveja e o suor. As cadeiras já estavam ajeitadas em cima das mesas redondas e as velas dentro das garrafas apagadas e frias. Tudo indicava que era hora de ir embora, no entanto, um dos clientes ainda permanecia no local, mal se segurando no banquinho do bar de tão bêbado, tentando convencer o balconista para que lhe vendesse o último gole de uísque. O homem trajava um terno de alinhamento impecável, e usava brilhantes sapatos bicolor preto e branco, luvas de couro e gravata de seda. Com certeza, um carro com motorista o aguardava na rua.  Este insistente bêbado era um dos mais assíduos freqüentadores do cabaré, além de ser considerado um dos grandes magnatas de Niterói e presença constante nas  badaladas noites de Copacabana.
    -Nós já estamos fechando, senhor… – disse o bilheteiro, aproximando-se do homem – O senhor seria tão gentil de se retirar?- pediu polidamente, mostrando a porta do local.
O homem, que estava com o rosto apoiado no balcão e com um fio de saliva escorrendo pelo canto da boca, abriu os olhos e levantou a cabeça devagar. Seus olhos nublados percorreram o entorno, piscando repetidamente, como para tentar se localizar ou lembrar onde se encontrava. Puxou a língua e a passou pelos lábios. Sua boca estava seca e amarga.  Limpou a saliva com a manga e olhou para o bilheteiro com a cabeça cambaleante.
    -Como assim, já estão fechando?...- disse, enrolando as palavras –Mas é cedo demais!...- virou-se para o barman e bateu a mão aberta sobre o balcão –Eu já disse que quero meu último drinque!... Você vai me dar ou não, seu inútil? Eu tenho grana, viu?... Muita grana!- enfiou a mão no bolso e pegou a carteira, abrindo-a e mostrando as notas para o homem na sua frente.
    Mas este negou com a cabeça e se virou para guardar o último copo na prateleira.
    -Sinto muito, senhor, mas o bar já fechou.- disse, com voz inexpressiva, como se já conhecesse aquela frase de cor.
Vendo que não tinha jeito de conseguir mais um trago, o cliente se levantou, pegou  seu sobretudo de alpaca, suas luvas e seu cachecol e se dirigiu com passo  cambaleante em direção da porta, que o bilheteiro segurava aberta.Atravessou o umbral e saiu à rua, onde uma rajada de vento gelado o esbofeteu, fazendo-o estacar e se encolher. Vestiu o sobretudo e se enrolou no cachecol, tremendo violentamente…Olhou para a rua, em ambas direções… Onde mesmo tinha deixado estacionado o maldito carro? Por qué o motorista não estava esperando por ele alí? Mas onde tinha se enfiado aquele infeliz?... Já acertariam contas quando chegassem em casa… 
    O homem começou a caminhar devagar, com passos inseguros,  à procura do carro. De vez em quando gritava o nome do motorista, e as pessoas que passavam se viravam para vê-lo, murmurando.
    -Olha ele de novo alí… Mas que vegonha…
No andar de cima do cabaré, as vedetes estavam em polvorosa, pois a casa  estivera lotada, o que tinha significado muitas propinas e convites de pessoas importantes. Todas falavam ao mesmo tempo, comparando seus ganhos e propostas, rindo e gritando, agitadíssimas e cheias de expectativas, enquanto trocavam suas saias cheias de franjas e lantejoulas por elegantes e vistosas roupas de festa.
Clementine Baker era uma das dançarinas do cabaré. Havia chego de Paris há pouco tempo, depois de morar dez anos no centro boêmio francês, e seu sonho era estrear um filme só seu em Hollywood. Porém, como até então a sorte havia-se mostrado esquiva, tinha sido obrigada a voltar para o Brasil e trabalhar no que aparecesse.
    Por aqueles días seu nome andou estampado em manchetes e revistas por ter se envolvido com Haumphrey Garbo, um famoso ator de cinema mudo americano encontrado morto misteriosamente em sua mansão no ano anterior.
    Depois daquilo, Clementine voltou para o Brasil e foi trabalhar num cabaré de certo prestígio, chamado“Blife Blafe”, onde fazia a parte principal e coreografava as demais vedetes. Tendo um total domínio do sapateado e do charleston, era uma das mais aplaudidas quando pisava no palco do cabaré carioca.
    Naquela noite em particular se sentía um pouco inquieta, como preocupada ou angustiada por algo que não conseguia definir. Um pressentimento talvez?... Um estranho calafrio percorria as suas costas de tempo em tempo, mas tentava se distrair pensando no trabalho.
    Levantou-se da sua penteadeira, alongando as costas e braços, e olhou em volta. As garotas estavam mesmo agitadas, o camarim mais parecía uma colméia. Clementine sorriu e mexeu a cabeça. Tudo bem, cada uma já tinha seu programa, do qual com certeza voltaria com a carteira mais avultada, mas não podiam esquecer que o trabalho continuava amanhã.
    -Meninas…- chamou, batendo palmas –Meninas, prestem atenção um momento, por favor… -mas a algazarra continuou. Então ela ergueu a voz e seu poderoso tom de contralto resoou por cima das outras –Meninas,escutem aquí…- as garotas silenciaram e se viraram para ela, atentas –Olha, eu sei que estão muito contentes e que vão ter uma noite ótima, mas amanhã precisamos chegar cedo para acertar a coreografia daquele ragtime. Está muito suja ainda – disse  com seu ar profissional –Acho que podemos acrescentar alguns giros na parte dois e limpar a última sequência, sobretudo do pessoal da segunda fileira… Vocês sabem do que estou falando, nao é mesmo?- concluiu, meio reprovadora, meio zombeteira.
    As meninas riram, admitindo a crítica de Clementine, porque sabiam que ela quería oferecer o melhor espetáculo e que para isso todas precisavam se esforçar. Deixaram então suas fofocas e comparações e prestaram atenção.
Assim que ela explicou para as vedetes o que pretendia fazer no dia seguinte as despediu e terminou de trocar de roupa, pegou sua bolsa e saiu por último do camarim, apagando as luzes e trancando a porta.
    Quando saiu para a rua, aquela sensação de angustia, de inquietação pareceu aumentar, mas ela tentou não se deixar impressionar. Talvez só se tratava da chuva e da neblina que tinham tomado conta da rua, deixando-a  com um ar ainda mais sombrio. Se embrulhou em seu casaco, tremendo e encolhendo-se, e caminhou na madrugada gelada e silenciosa até chegar em seu apartamento, que ficava a dois quarteirões dali. Entrou rapidamente no prédio,  cumprimentou o velho porteiro, que cochilava em seu escritorio, e subiu as escadas com a respiração ofegante e o coração disparado. Queria chegar o antes possível… Quando entrou pelo corredor em penumbras e parou diante da porta do seu apartamento, imediatamente percebeu que esta tinha sido arrombada.
    Clementine estacou, gelando. Todo seu corpo estremeceu, como se tivesse levado uma bofetada… Segurando o fôlego, se abaixou devagar. Havia marcas de dedos na parede e na madeira da porta, e de algum objeto afiado com o qual tinham violado a fechadura. Engoliu, soltando uma muda exclamação de espanto.
    -Meu Deus, mas o que é isto?- sussurrou, levando a mão aos lábios –O que aconteceu?
    Quem poderia ter entrado em seu apartamento? E para quê?... Segurando o fôlego empurrou suavemente a porta, que se abriu devagar, rangendo tristemente. O cenário que foi aparecendo diante dos seus olhos encheu-a ainda mais de medo: móveis no chão, gavetas abertas, objetos quebrados, esparramados pelo carpet, roupas e caixas jogados…Mas quem tinha deixado o lugar naquele estado? E pior, o que tinham levado?
Clementine teve um violento sobressalto quando se fez esta pregunta, e imediatamente correu para o telefone e tentou fazer uma ligação, porém, foi em vão, pois o aparelho estava mudo. Ela botou o  fone no aparelho bruscamente e levou os punhos ao peito, apertando os lábios com força. Suspirou profundamente e girou sobre si mesma, contemplando a bagunca ao seu redor com uma expressão indescifrável. Na janela escancarada do quarto a cortina de tule branco esvoaçava numa louca dança impulsionada pelo vento, e a chuva fina que comecava a entrar  por ela fazia o chão ficar semeado de pequenas pérolas brilhantes.Se quería um filme de Hollywood, esta seria uma boa cena para o começo, pois tudo lhe parecía irreál, como se fosse uma montagem da qual ninguém tinha-lhe avisado. O ambiente era realmente asustador. A vedete, como voltando a si de repente, soltou uma exclamação de pavor e correu até a janela, afastou a cortina molhada e se assomou, procurando algum tipo de ajuda. E eis que do alto avistou o senhor Vespúcio, caminhando apressadamente em direção a sua casa, que ficava um pouco mais a diante.
    Um soluço abafado escapou da sua boca ao avistar o homem, e botando o corpo para fora, começou a gritar seu nome, totalmente fora de si. A sua voz ecoava, desesperada, pela rua vazia.
Vespúcio demorou um pouco a escutá-la, como se não acreditasse em seus ouvidos, mas finalmente parou e se virou em direção à janela onde Clementine se encontrava. Ao vê-la naquele estado, voltou sobre seus passos o mais rápido que pôde, entrou no prédio e correu escadas acima rapidamente para ver o que tinha acontecido com a dançarina. Ao irromper pela porta escancarada, encontrou-a enrodilhada no canto de uma poltrona, chorando descontroladamente. Assustado, aproximou-se dela, dando ao pasar uma olhada na desorden do apartamento. Porém, nao fez nenhuma conjectura ainda e preferiu dar atencao à coitada da moca.
    -Clementine, minha querida, mas o que aconteceu? – perguntou, ainda ofegante após subir a escada. Sentou-se ao seu lado e passou seus braços pelos ombros trémulos da moça –Por favor, acalme-se e me conte o que aconteceu…
    Clementine ergueu a cabeça e olhou para ele. Estava pálida e com o rosto desfigurado pelo terror. Agarrou Vespúcio pelos colarinhos do agasalho.
    -Entraram no meu apartamento, seu Vespúcio!... Olhe só o desastre!...- chorou, mostrando em volta –Eu cheguei aquí e me encontrei com isto! Olhe, reviraram toda a mobília, fuçaram nas gavetas, jogaram tudo pelo châo!... Mas o que é isso, seu Vespúcio? – exclamou a moça, aos prantos.
    O homem a abraçou com forç a, tentando acalmá-la e manter ele próprio a serenidade.
    -Me diga, minha querida, eles levaram alguma coisa de valor?- indagou, com uma voz controlada e baixa.
    Clementine endireitou-se, fungando, e, afastando os cabelos do rosto, deu uma olhada em volta.
   -Eu nao sei, seu Vespúcio, nem revistei o apartamento ainda… É que fiquei tão assustada quando cheguei e vi que a porta tinha sido arrombada, que não atinei a nada…- explicou com a voz insegura.
    -Não se preocupe, isso é normal.- a consolou o homem, esboçando um sorriso benévolo. –Então, que lhe parece se vamos dar uma olhada por aí e ver se está faltando alguma coisa?- propôs, levantando-se da poltrona e pegando na mão de Clementine.
    Devagar, ambos percorreram os quartos, sentindo-se tomados por calafrios diante do vandalismo dos ladrões. Realmente, tinham destruido tudo. Clementine foi revisando aquí e ali, controlando-se o melhor que podía, mas não se mostrou alterada porque algo tivesse sumido. Quando acabaram, retornaram à sala.
-Olhe, seu Vespúcio, até agora não senti falta de nada – respondeu Clementine, meio deconcertada –Até as minhas jóias continuam na caixinha em cima da penteadeira!... –franziu a testa – Parece que só reviraram tudo e fizeram questão de deixar esta bagunça toda.
    -Muito estranho, você tem razão, minha querida...- concordou seu Vespúcio, olhando de novo em volta - Ladrão que entra em apartamento e não rouba nada? Isso não faz sentido!... Você tem alguma ideia de por que alguém faria algo assim com você?
    Repentinamente, Clementine se virou para ele e lhe jogou os braços no pescoço, rompendo em histêricas lágrimas novamente. O homem a abraçou com força, dando-lhe uns tapinhas nas costas. Sentia-se realmente aflito pela situação da vedete. Precisava ajudá-la de alguma maneira.
-Escute, minha querida, acalme-se e me escute- disse entao, pegando-a pelos ombros e olhando-a nos olhos –Eu acho melhor você não ficar aqui esta noite. A gente não sabe se eles não estão planejando voltar, já que não levaram nada, então… O que você acha?
    -Mas para onde eu vou?... Não conheço ninguém que possa me hospedar!...
    -Olhe, às vezes, quando acontece alguma emergencia, as vedetes têm autorização para se hospedarem no cabaré. –olhou em volta, sorrindo com tristeza –E esta, sem dúvida, é uma verdadeira emergencia. Então, vamos voltar lá e arrumar um lugar para você passar esta noite. Amanhã veremos o que fazer. O que você acha?
    Clementine olhou para ele com olhos brilhantes de gratidão e fez um esforço para se recompor.
    -Seu Vespúcio, o senhor é demais… Nem sei como agradecer-lhe… Eu realmente não tenho para onde ir.- murmurou, pegando as suas mãos ásperas e enrugadas.
    -Não se preocupe com isso, Clementine.- respondeu o bilheteiro, ruborizando-se –Agora, vamos. Bote algumas coisas numa mala e eu a levo até lá.
    Mais calma, a vedete obedeceu  Vespúcio e jogou algumas roupas  e artigos de higiene pessoal numa pequena mala, vestiu de novo seu sobretudo, as luvas e o cachecol, mais um gorro de lã, e abandonou o predio acompanhada pelo velho senhor. Na saída, pediu para o porteiro que subisse até seu andar e botasse umas tábuas na porta para que o apartamento nao ficasse aberto.
Na manhã seguinte Vespúcio apareceu cedinho no cabaré, preocupado por Clementine, e encontrou algumas vedetes que já tinham aparecido para o ensaio. Todas estavam muito assustadas com a história do assalto na casada amiga na noite passada. Custavam a acreditar em semelhante violência. 
Naquele mesmo dia, depois do ensaio da manhã, Clementine foi até a delegacia, acompanhada por seu Vespúcio, pois ele sabía que histórias de vedettes nao eran levadas muito a sério pelos policiais, e ele pretendía que esta não passasse em branco. Chegando lá, a fizeram esperar um bom tempo, entre murmúrios e olhares de evidente desaprovação, porém, finalmente entrou no escritorio do delegado, que a cumprimentou fríamente e lhe ofereceu uma cadeira. Perguntou seu nome de má vontade e nem sequer o escreveu em seu bloco de reportes. Ela e Vespúcio fizeram de conta que não perceberam a sua grosseria e Clementine então explicou todo o ocorrido para ele, tentando manter a calma e a clareza em seu relato, mas o policial não se mostrou muito interessado pelo caso, já que o ladrão não havia levado nada. Era como se não tivesse acontecido. Quem sabe nao fora um ex namorado despeitado que quis se vingar. Isso era típico com estas coristas.
-O senhor acha que pode fazer alguma coisa?...- perguntou Clementine, sem poder disfarçar a sua ansiedade –Acha que dá para encontrar quem fez isto?...
    O delegado fez uma cara de tédio e desprezo que quase lhe valeu um murro do Vespúcio, que teve de fazer um tremendo esforço para se segurar.
    -Entenda uma coisa, moça – explicou o delegado, com voz cansada, brincando com a caneta entre os dedos – Não podemos sair daqui para ver um apartamento que foi apenas revirado. Ocorre que temos coisas mais importantes para fazer, viu? Tem certeza de que não conhece o delinqüente?- inquiriu num tom malicioso, esboçando um sorrisinho despectivo.
    -Eu já disse que não. Quando cheguei no apartamento já não tinha ninguém e estava tudo revirado.- repetiu, zangada.
    -Pois é, moca, é disso que estou falando. Como vou botar meu pessoal para correr atrás de… ninguém, segundo as suas próprias palavras? Nao dá, lamento.
    -Mas, como…?- quis replicar Clementine.
    -É isso aí, moca. Olhe, quando você tiver alguma prova, uma foto, um nome, volte aquí e aí sim podemos fazer alguma coisa, tá bom?... Mas por enquanto…
    Vendo que nao iriam conseguir nada daquele homem com seus preconceitos, foram embora para nao acabar tendo um episódio desagradável. Nao valia a pena.
    Clementine entrou muito triste e apreensivano cabaré. Se perguntava como era que podiam ignorar aquele delito. Precisava haver sangue e um corpo para começarem a tomar alguma providência? … Bom, pelo menos agora sabía que da próxima vez que sentisse calafrios e uma angústia inexplicável, precisava tomar cuidado, porque significava que algo de ruim estava por acontecer.
    Ainda bem que durante a tarde voltaram a ensaiar as coreografías e rever os figurinos e o cenário. Isto serviu para deixar Clementine um pouco mais tranqüila e a distraiu dos pensamentos ruins que a assaltavam uma e outra vez. Tinha medo de regresar ao apartamento quando saísse do cabaré. Quem sabe o que encontraría desta vez?...
    Mas tinha espetáculo, era noite de sábado e o local estava lotado, todos querendo assistir a estréia do novo show das vedetes. Então, ela fez um esforço, afastou aqueles maus pressentimentos e junto com as vedetes vestiu suas melhores roupas de palco, plumas, lentejoulas, luvas de seda e vistosas bijuterias e se preparou para o show. Hoje era o dia em que muitos figurões da cidade marcariam presença e quem sabe alguma coisa importante poderia surgir para alguma delas após a apresentação do novo show, que já vinham ensaiando há meses.
    Naquela noite, e talvez justamente por se tratar de uma estréia para gente muito importante, a banda estava afiadíssima, tocando os últimos sucessos das paradas norte americanas e com um crooner ao vivo no palco principal. Vespúcio, usando um belo chapéu de feltro que havia comprado há pouco tempo especialmente para esta noite,  recebia o público com um radiante sorriso e comemorava por ver a casa tão lotada e animada. Até o magnata beberrão estava presente, acomodado nas primeiras mesas perto do palco, só esperando o espetáculo começar etento já virando vários copos de uísque e martini branco.
     Atrás da coxias, Clementine e as outras aguardavam o momento certo para entrar no palco, ansiosas e expectantes,  acotovelando-se para tentar avistar os importantes personagens que haviam chego até ali para assisti-las.  A música de abertura se iniciou, as luzes coloridas se acenderam e a cortina se abriu. O apresentador recitou suas falas e abriu os braços. Aquela era a deixa para entrarem.
Luzes, música e... Ação! Até parecía um filme de Hollywood.
As vedetes invadiram toda a extensão do palco entre piruetas, rodopios e saltos, sorridentes e graciosas como nunca. Para aquele público, pareciam algum tipo de miragem mágica. Os aplausos se desataram. Clementine era a vedete estrela, a solista, e quando entrou no palco, outra ovaçao explodiu. Ela sorriu feito uma princesa, agradecendo, e enquanto executava seu número, podía ver ali sentados a todos os figurões da cidade: o desembargador, o presidente da cámara, um ou dois deputados, chefes de policía, advogados, importantes nomes da imprensa local… Todos tinham vindo para apreciar o grande show. Aquilo era mesmo uma honra.
De repente, no meio do terceiro número, se ouviram uns estampidos, que pareciam ser tiros, ninguém sabia de onde. A orquestra parou e houve um momento de total desconcerto. O que estava acontecendo?... Então, os disparos se repetiram e,desta vez, o público percebeu do que se tratava. O pánico tomou conta imediatamete do local. As pessoas levantaram-se de suas mesas entre gritos e empurrões, tentando dirigir-se à saída. Alguns tentaram se proteger embaixo das mesas e atrás das cortinas e dos grandes vasos de folhagem, porém a maioria se aglomerava nas escadarias da grande porta da entrada. Ninguém quería saber quem era o atirador ou se tinha alguma vítima. O único que lhes interessava era se mandar dali.
    Alguns tinham visto um homem com aspecto de mafioso puxar uma arma da jaqueta e começar a atirar em direção ao palco, aparentemente sem nenhuma provocação.Então, um outro homem, que estava no meio da platéia ensandecida, pulou entre as mesas e cadeiras caídas, e foi em direção ao palco. De um pulo subiu nele e se aproximou das aterrorizadas vedetes, que comecavam a fugir pelas coxias. Agarrou Clementine pelo braço e a puxou para si.
-Você precisa sair daqui, rápido! – murmurou , com um acentuado sotaque francês – Estão atrás de você.
    Clementine recuou, lutando para se desvencilhar das mãos do homem-Me largue!... Quem é você?... Me largue! O que você quer?- gritou, empurrando-o, mas sem conseguir soltar-se
    -Me escute, cherie!- exclamou o homem, atraindo-a violentamente para si de novo, falando quase que em seu ouvido –Fuja daqui. Já disse que eles estão atrás de você. A encontraram, você tem que fugir!
    - Atrás de mim?... – repetiu ela, atordoada – Mas do que você está falando? Quem é você?...
    -Isso nao interessa agora, só faça o que eu digo. Va embora agora mesmo!- a interrompeu o homem, quase empurrando-a para as coxias –Va ou será tarde demais!
    -Mas, o que foi que eu fiz?- exclamou Clementine, sem conseguir entender o que estava acontecendo –E quem é que está atrás de mim?...
- Agora não tenho como lhe explicar.- disse o sujeito, cobrindo-lhe a boca com uma mão. Clementine sentiu o cheiro de seu perfume invadir seu cérebro e entontecê-la, mas resistiu.
    -Pois eu não saio daqui até você me explicar o que é tudo isto e quem é você.- declarou, com uma repentina firmeza que o homem não esperava. Já estava começando a se cansar deste puxa-estica.
    Então, o sujeito pareceu desarmamdo diante da sua determinação. A agarrou pela mão e a levou para um canto escuro atrás das coxias, onde estavam empilhadas as caixas com as cenografias. Ficou na sua frente, perscrutando a sua pálida face durante alguns segundos, como se estivesse pesando as consequências de dizer-lhe a verdade. Mas aqueles olhos de fogo o venceram.
- Eu fui amigo de Haumphrey Garbo...- comecou a falar, abaixando a cabeça.
    Porém, antes de que o homem terminasse a frase, se ouviu mais um tiro, que explodiu numa das caixas, acima das suas cabeças. Instantaneamente, ambos se abaixaram e num segundo o homem sacou uma arma da sua jaqueta e fez alguns disparos na direção de onde viera o tiro.
    -Corra para a porta nos fundos!- ordenou, apontando para os camarins e olhando em todas direções com os olhos arregalados e a respiração ofegante -Tem um carro Ford preto lhe esperando na rua de trás! –e antes que ela pudesse retrucar qualquer coisa ou fazer qualquer pergunta, a empurrou pelo corredor escuro –Va, menina!... Eu estou indo atrás de você! Corra, eu vou lhe dar cobertura!... E não se levante!
Clementine, sem saber direito o que fazia nem por quê, mas apavorada como que estava acontecendo, obedeceu sem replicar e seguiu rastejando até o final do corredor, irrompeu no camarim e correu até uma pequena porta, a empurrou com as mãos e saiu na rua que dava para os fundos do cabaré. Ainda teve tempo de dar uma olhada para atrás e viu que o homem ainda permanecia abaixado entre as caixas, com a arma apontada em direção a um alvo que ela não conseguia enxergar. De pronto, aproveitando uma oportunidade, este atirou num lustre de cristal que estava  bem no meio do salão. As lâmpadas fizeram pequenos curtos e lançaram faíscas e fumaça. Em seguida, as luzes se apagaram e tudo ficou nas trevas.Escutaram-se mais gritos e barulho de móveis caindo, passos e exclamações abafadas..
Lá fora, tal como o homem dissera, havia um Ford preto esperando por Clementine. Assim que apareceu na rua, o motorista abriu a porta do carro e lhe gritou para que subisse rápido. Mais uma vez, atordoada e apavorada, e vedete obedeceu, lançando-se no interior do automóvel. Quando já estava sentada dentro, viu aparecer o homem correndo pela rua escura em direção ao carro, chegou junto e saltou ao lado do motorista. Imediatamente, este acelerou e o carro saiu cantando pneus, sem deixar nenhum vestigio da sua presença para trás. Clementine segurou firme no banco, cravando as unhas no estofado, e fechou os olhos. Isto tinha que ser um pesadelo, só podía ser isso. Como era que se encontrava metida neste tipo de coisa? Ela era apenas uma vedete que quería fazer um filme!...
    Sem diminuír a velocidade, foram pelas ruas silenciosas, viraram varias esquinas e passaram por lugares que Clementine não conhecia, mas ela teve a impressão de que estavam indo para algum bairro de classse alta. Continuaram deste jeito até chegarem a uma casa com altos muros de tijolo, grades pontiagudas e um portão enorme. Era uma fastuosa mansão com um amplo gramado na entrada e um impresionante chafariz de mármore.O carro finalmente se deteve e ambos desceram. Clementine se sentía tonta e fraca, não conseguia pensar com clareza, mal podía falar.
    - Venha, entre, Clementine.- disse ele, enquanto subíam os degraus da entrada flanqueada por grandes pilares de mármore branco.-Vamos descansar e nos repor desta correria e depois poderemos conversar. Prometo que lhe explicarei o motivo pelo qual tem gente atrás de você –  acrescentou, conduzindo-a até o grande e iluminado salão. 
As últimas horas haviam sido demais para ela. Sua cabeça não conseguia processar tanta informação em tão pouco tempo e o pior era que tudo eram cabos soltos que não conseguia atar e menos ainda entender.
    -Acho que lhe devo algumas explicações, Clementine – disse o homem, aproximando-se com dois copos de uísque com gelo –Nem sequer fomos apropriadamente apresentados ainda- acrescentou, sorrindo gentilmente e estendendo o copo para ela com um elegante gesto –Meu nome é Lisseu Pasteur, amigo de seu falecido namorado- e fez uma pequena reverência.
    Clementine pegou o copo e bebeu o conteúdo de um gole. Comecava a recuperar o controle sobre ela mesma. E estava furiosa. Deixou o copo em cima de uma mesinha de vidro e se virou para o homem.
- O.K, mesieu Lisseu, o senhor tem toda razão. Me deve explicações sim, e muitas. Pode começar a falar.- Clementine ajeitando-se no sofá  continuou –O senhor tem toda a minha atenção.- concluiu, cruzando as torneadas pernas.
    Lisseu nao pôde evitar um sorriso de complacência diante da atitude corajosa e determinada da moça. Sentou-se na sua frente e, mexendo seu copo em movimentos circulares e lentos, começou a explicar toda a trama na qual Clementine Baker estava envolvida, sem sequer saber, e que era uma teia de intrigas difícil de imaginar.
    Acontecia que Haumphrey Garbo, na verdade, não havia falecido de morte natural e sim por envenenamento. A armadilha estava num inocente e tentador copo de uísque que foi misturado com barbitúricos e veneno para ratos. Ele já vinha sendo ameaçado de morte fazia algum tempo e sabia que uma hora ou outra algo de ruim poderia lhe acontecer.
-Mas por que Haumphrey estava sendo ameaçado?...- inquiriu Clementine, impressionada –Por que o mataram? O que ele fez?...
    Lisseu depositou cuidadosamente seu copo na mesinha e se inclinou para frente, como se fosse fazer uma importante confidência para a vedete. Juntou as mãos sob o queixo e a sua expressão se tornou séria.
    -Vou tentar lhe explicar.- começou, pigarreando –Acontece que Haumphrey  tinha herdado um objeto muito valioso e, por incrível que pareça, ele o passou para você durante o tempo e que estiveram juntos.
    Clementine olhou para Lisseu, franziu a testa e cruzou os braços, soltando um suspiro curto e impaciente.
-Olha, até agora parece que a única que não sabe de nada sou eu e estou começando a ficar cansada disso. Meu namorado foi morto, arrombaram meu apartamento e quase fui morta a tiros- disse a vedete, irritada – E agora mais essa!... E você pode me dizer, pelo menos, que objeto seria esse?
    Lisseu respirou fundo, tentando ser paciente. Mas tinha que entender que para esta moça comum todo este embrolho devia ser algo estapafúrdio, perigoso e muito inconveniente, então acudiu aos seus melhores modos para explicar-lhe as coisas sem irritá-la ainda mais.
-A coisa foi assim: acontece que os caras que entraram em seu apartamento estavam, justamente, atrás desse objeto – comecou, num tom calmo e baixo.
     -Mas no meu apartamento não tem nada que possa…
     –Você, por acaso, se lembra do Haumphrey lhe entregando algum objeto em Paris? Talvez numa data especial?...- a instigou Lisseu.
Clementine abaixou a cabeça e tentou se concentrar. Fechou os olhos e fez uma retrospectiva em sua mente de todos os presentes e jóias que Haumphrey Garbo havia lhe dado. Várias coisas vieram a sua memória, como aquele anel de rubi engastado em ouro, ou o colar de pérolas javanesas, os brilhantes em conjuntos de brincos, pulseiras e gargantinhas, alguns casacos de pele... Todos presentes normais, por assim dizer. Mas tudo aquilo estava em seu apartamento e não tinha sido levados. Que outra coisa de valor tinha ali? Clementine fez um esforço, mas não conseguiu lembrar de mais nada. O que diabos era, então?.
-Concentre-se, Clementine… Tem que estar aí, só que você não lhe prestou atencão porque talvez parecía um objeto comum, velho ou barato.- insistiu Lisseu, intenso.
    No momento em que o homem mencionou o objeto velho e gasto, de aspecto barato, a vedete teve o flash de uma imagen e abriu os olhos, endireitando-se.
    -Olha, agora que você falou…- disse, apertando os olhos como se quisesse materializar a imagem que aparecia em sua mente -Sem serem todos esses presentes, ele me deixou algo sim… Mas é um tipo de enfeite meio velho, bastante antiquado e mal feito. Nao o botei em nenhum lugar porque achei cafona demais. Nem lembro onde o enfiei.
    Lisseu se endireitou, tenso, e a olhou. Todo seu corpo parecía estar-se segurando para não explodir.Uma falsa tranquilidade tingia a sua voz quando perguntou:
- E como é esse objeto, Clementine?
-Ah, é um navio em miniatura, uma coisinha mixuruca e esquisita que não tinha nada a ver com os outros presentes que Haumphrey tinha me dado… Achei até esquisito ele vir com uma coisa dessas…- explicou a mulher num tom meio ressentido–Agora que me lembro, acabei nem ficando com ele. O deixei em consignação com um amigo meu, dono de uma lojinha num mercado de usados na Rua Prudente. Mas era tão feínho que ainda deve estar lá.
    Lisseu soltou uma exclamação e se deixou cair no encosto do sofá.
     -Não acredito! – disse, apertando os punhos e batendo nas coxas. Em seguida, inclinou-se para a moça, pegando as suas mãos  – Clementine, seu namorado deixou para você algo mil vezes mais valioso que todos esses presentes que lhe deu.
   Sem poder se conter, Clementine deu uma gargalhada.
-Valioso?...- exclamou, apontando-o com o dedo - Aquele navio velho? Você deve estar brincando, mon ami! – e acrescentou, um pouco mais séria, quase irritada –Por favor, não me faça rir. Esta piada já não tem mais graca, acho que vou embora.- e se levantou da poltrona, procurando suas coisas.
- Ele deixou para você o “Galeão de Ouro” – disse Lisseu, num tom tão dramático que fez Clementine parar e se virar para ele.
    -O “Galeão de ouro”?...- repetiu, erguendo as sobrancelhas –E se supõe que devo saber o que isso significa?
    -Por favor, madmoiselle Baker, fique mais um pouco que eu vou lhe explicar o que é e o que significa o “Galeão de ouro”.- respondeu Lisseu, mostrando-lhe a poltrona da qual acabara de se levantar.
    -Tudo bem, vou escutá-lo, mas se tudo isso resultar numa palhaçada mais, eu vou embora de vez.- lhe advertiu, ajeitando-se no sofá.
Mais tranquilo com a atitude de Clementine –a pesar de arredia- Lisseu começou a contar a história daquele desejado objeto.
    - Na verdade, o “Galeão de Ouro” era parte do patrimonio da família Garbo fazia muitos anos, e passou pelas mãos devárias gerações, sendo cuidado e guardado à sete chaves. O “galeão” tinha sido deixado para o pai de Haumphrey com todas as recomendações de costume, e este, antes do seu falecimento, passou a incumbência para o filho, que prometeu guardá-lo com o mesmo zelo que seus predecessores. Mas desta vez tinha um fator que fazia com que tudo fosse diferente: Haumphrey era o último da linhagem. Ele não tinha se casado nem tinha nenhum filho, então era imperativo que procurasse alguém da sua mais absoluta confianca para entregar-lhe o Galeão, caso alguma coisa acontecesse com ele… E esse alguém foi você, Clementine.
    A moça levou uma mão ao peito, visívelmente impressionada.
    -Nossa, nunca pensei que Haumphrey confiasse tanto assim em mim.- comentou em voz baixa e algo emocionada.
    -Aquele homem que atirou em você hoje no cabaré é o mesmo que matou Haumphrey e também foi ele quem invadiu seu apartamento. – continuou Lisseu -Estava atrás do navio e como não o achou a seguiu e foi tentar lhe capturar para arrancar-lhe o paradeiro.
- Me capturar?... – disse Clementine, empertigando-se - Mas aquele homem atirou em mim!- exclamou –Ele não quería me capturar, queria era me matar!
-Não, você é importante demais como para eliminá-la, Clementine. Você é a única que sabe onde está o Galeão- a tranquilizou Lisseu -Ele queria apenas assustá-la e depois seqüestrá-la para você levá-lo até o navio.
    -Ah, não?...-retrucou ela, com ar ofendido –E quando o arrancarem de mim, hein? Aí sim a minha vida vai estar em perigo?... Nossa, você é inacreditável!- levantou-se da poltrona bruscamente e foi pegar as suas coisas –eu disse que se isto fosse uma palhaçada eu iria embora, nao disse?... Pois bem…- declarou, agarrando seu sobretudo,sua bolsa e suas luvas.
    Lisseu retornou para junto dela, chateado pela sua decisão.
    -Madmoiselle Clementine, por favor…- pediu, segurando-a com suavidade pelo braço.
    -Não, Lisseu, já estou farta deste jogo.- replicou ela, desvencilhando-se e começando a caminhar em direção à porta –Pode chamar seu chofer.
      Porém, antes de chegar a ela, parou e se virou para o homem.
    - Mas antes de sair tenho mais duas perguntas para você – disse, num tom agressivo – Quem é esse homem que está atrás de mim? E, a mais importante: como você sabe de todas essas histórias?... Será que pode me responder, ou é muito pedir?
    Lisseu, na verdade, não quería ver-se obrigado a contar-lhe tudo nem a chamar os seguranças para que a impedissem de sair da casa, mas diante da sua determinação em ir embora, teve de ceder. Aproximou-se dela devagar, segurando seu copo numa das mãos.
    -Muito bem, madmoiselle, você venceu.- replicou o homem, abrindo os braços 
    -O.K, então comece.- lhe ordenou, botando as mãos na cintura.
    Lisseu bebeu vagarosamente do seu copo, olhou para ela com as sobrancelhas arqueadas e pigarreou.
    -Aquele homem que atirou em você e está atrás do Galeão é o irmão mais velho de Haumphrey, o conhecido magnata Jeffrey Garbo. Eles nunca se deram muito bem, porque Jeffrey sempre se sentiu menosprezado pela familia. Haumphrey sempre fora o predileto e ele foi acumulando este ressentimento por anos a fio. A coisa estorou quando o pai morreu e se deu a conhecer o testamento. Jeffrey ficou furioso porque achou a divisão da herança injusta. Ele que trabalhara toda sua vida nas empresas do velho, levaría a menor parte, enquanto o irmão, aquele doidivanas metido a ator, ficaria com as coisas mais valiosas. Entre estas coisas estava o “Galeão de ouro”. Jeffrey fez um escândalo no dia da leitura do testamento e saiu dali jurando vinganca. Ninguém o levou muito à sério, mas  o homem  já provou que está mesmo a fim de recuperar o Galeão a qualquer custo.
    -Nossa , mas que irmaozinhos, hein?  Caim e Abel…- comentou Clementine, melindrada.
    -E como é que eu sei de toda a história?... – Lisseu serviu-se seu terceiro copo de uísque –Pois acontece que eu era um dos melhores amigos de Haumphrey e foi ele mesmo quem me contou toda a história antes de morrer. Ele tinha me procurado para pedir-me ajuda, pois seu irmão estava ameaçando-o e ele sabia que uma hora ou outra algo de muito ruim poderia acontecer com ele… O cara sabia o irmão que tinha, né?
- Mas por que o pai de Hauphrey não deixou o “galeão” para o Jeffrey, já que era o irmão mais velho?Teria sido o lógico. Com certeza era o que ele esperava.- perguntou a moça –Nao estranha que ficasse tão chateado…- comentou.
-Infelizmente, Jeffrey tinha-se tornado um completo irresponsável como passar dos anos e estava dilapidando toda a fortuna da família – explicou Lisseu – Já havia perdido sua parte da herança em jogos, mulheres, viagens e festas, antes mesmo do pai falecer. Alguns dizem que a sua morte foi apressada pelo comportamento de Jeffrey… Contra a vontade de toda a familia, o velho passou terrenos e alguns imóveis ao seu nome, quem sabe com a esperanca de que o rapaz tomasse juízo e aproveitasse a oportunidade, mas ele acabou perdendo tudo e ainda teve o descaro de aparecer querendo mais. Mas aí o velho endureceu e fechou a carteira. Acho que Jeffrey contava com aquela herança, especialmente com o Galeão, para continuar com a sua vida de luxos e  excessos, então quando descobriu que o navio tinha sido entregue para Haumphrey, ficou profundamente frustrado e enfurecido e começou então com as ameaças e as brigas. Ninguém o levou muito a sério, como já lhe disse, mas quando Haumphrey sofreu o primeiro atentado, todos o aconselharam a que contratasse alguns com guarda-costas… Mas você sabe como era aquele maluco…
    -Mas por que aquele maldito galeão é tao importanate para o Jeffrey?- indagou Clementine, cruzando as pernas –Nao é só uma antigüidade qualquer?
-É aí que voce se angana, ma cherie…- disse Lisseu, com um sorriso malicioso - O “galeão” possui um pequeno compartimento no casco onde está escondida uma chave. E esta chave abre um cofre no Banco Dollets de Paris – explicou, meio cantarolando– E o que tem no cofre? Pois nada mais nada menos do que umas centenas de barras de ouro. Daí o tremendo interesse de Jeffrey no galeão… E, por sinal, é por isso que chamaram o velho navio pelo sugestivo nome de “galeão de ouro”.
    -Nada óbvio, né?- comentou Clementine, sorrindo –Mas, e agora? O que a gente faz?
-Bom,  teremos que agir rápido – respondeu Lisseu, voltando à seriedade – Amanhã cedo vamos até a loja do seu amigo e pegamos de volta o “galeão”.
    -Me parece muito bem.- falou a moça, levantando-se –Entao, suponho que agora vamos jantar e descansar.- disse, erguendo as sobrancelhas, com gesto mandao.
    -Mas é claro- respondeu Lisseu, levantando-se também.-Já mandei preparar uma deliciosa ceia e um quarto espera por você lá em cima.
Naquela noite Clementine colocou sua cabeça no suave e perfumado travesseiro da enorme e luxuosa cama de casal e seu corpo cansado mergulhou suavemente entre os lencóis de seda. Finalmente podía relaxar. No entanto, custou a dormir, quase sufocada pela pesada decoração cheia de cortinas de veludo, poltronas Luiz XV, tapetes persas, quadros e esculturas que pareciam encher o quarto. Tinha até pinturas no teto!... Mas também não conseguia pegar no sono porque nao deixava de pensar em toda esta mirabolante história na qual estava envolvida. Era mesmo no melhor estilo Hollywood, não podía negar. Tomara tivese câmeras e um diretor gritando “Ação”!... O problema é que não se tratava de um filme e sim da realidade, e naquele momento uma coisa começou a preocupá-la em extremo: e se seu amigo tinha conseguido vender aquele traste? 
    Na manhã seguinte Lisseu já estava na garagem com o motor de seu Ford ligado quando ela desceu para tomar café, então engoliu uma xícara de café e umas torradas e correu até o carro.
    -Estou pronta.- disse, com a boca ainda cheia.
Lisseu fez cantar os pneus e saiu pelos portões levantando poeira. Seguiram então até o mercado de usados, cortando caminho por varias ruas pequenas e estreitas, e chegaram lá quando este começava a levantar suas portas. Clementine deu o endereco exato para Lisseu e ele conduziu o Ford até lá quase voando. Levaram uns insultos e gritos, mas o homem pouco se importou. Tinha que chegar antes que o amigo de Clementine cometesse uma bobagem.
    Quando pararam diante da lojinha, a moça desceu rápidamente, enquanto Lisseu ficava aguardando no carro. Tudo parecia estar correndo bem, ninguém suspeito por perto… Dali a pouco, Clementine voltou toda saltitante, segurando uma caixa de papelão em suas mãos. Pela sua expressão de felicidade e alívio, Lisseu supôs que se tratava do galeão.
    -Aquí está!- exclamou Clementine, mostrando a caixa para o homem –Aquí está! Meu amigo não conseguiu vendê-lo!... Ainda bem que é tão féio…
  Lisseu sorriu, assentindo; em seguida abriu a porta do carro e lhe pediu, em tom preocupado: 
    -Vamos, entre, ma cherie, antes que a sua felicidade atraia a atenção de alguém que não queremos.
    Ela entrou no veículo, rindo, e uma vez que sentou, deu uma palmada nas costas do Lisseu.
    -Nossa, homem, relaxe!- exclamou –Já estamos com ele! Pare de ver bandido onde não tem… Pelo amor de Deus, você vai morrer de infarte se continuar desse jeito!
    Ele não conseguiu conter um sorriso diante o encanto infantil de Clementine.
    -Bom, agora vamos. Ainda nos resta um lugar onde ir.
    -Eu sei, o Banco Dollets, né? – disse Clementine, ajeitando-se na poltrona.
    Rodaram por mais algum tempo, porém, curiosamente, Lisseu deixou de correr. Pelo contrario, começou a dirigir devagar, mas acelerando em alguns momentos, como se estivesse querendo testar o carro, e Clementine notou que olhava constantemente pelo espelho retrovisor. Parecia repentinamente preocupado.
    -O que é agora, Lisseu?- indagou então, olhando para atrás. Mas só viu o trânsito em volta.
- Clementine, não se assuste, mas acho que estamos sendo seguidos – respondeu Lisseu – Tem um carro que está atrás de nóshá um bom tempo.
    Clementine riu.
    -Lisseu, pelo amor de Deus, tem um milhão de carros atrás de nós! Você está ficando paranóico!
    -Não, acredite, não me engano. Já fiz varios desvíos e o carro continua atrás de nós…Está vendo aquele Rolls Roice azul?
    Clementine olhou pela janela traseira de novo.
    -Estou…- respondeu, começando a se preocupar.
    -Pois é esse mesmo. Não consigo despistá-lo.
    - Não é possível! – exclamou Clementine – Você tem mesmo certeza?... Oh, meu Deus, será que é quem estou pensando?
    -Com certeza.- afirmou Lisseu, entre zangado e aflito.
     Então acelerou bruscamente o carro e começou a ziguezaguear entre o trânsito, buzinando e fazendo os pneus cantar. O carro que vinha atrás também acelerou, quase grudando neles a pesar das manobras de Lisseu. Não restava duvida, estavam sendo seguidos e era hora de agir.
Saíram do centro e tomaram algunas ruas estreitas até alcançarem a rodovia, esperando perder de vista seu perseguidor. Mas o Ford, inexplicávelmente, comecou a falhar. Parecia que quanto mais Lisseu pisava no acelerador, mais a velocidade diminuía. Imediatamente passou pela sua cabeça que o carro tinha sido sabotado por algum capanga de Jeffrey, e percebeu que estavam perdidos. O automóvel que os perseguía finalmente alcançou-os e ficaram lado a lado. Lisseu olhou pela janela e viu Jeffrey Garbo ao volante, rosto pálido e boca apertada, cabelos despenteados, testa perolada de suor. Ele virou a  cabeça e olhou para eles também, esboçando um sorriso diabólico.
- Me entreguem o “galeão”! – gritou, botando a cabeça para fora da janela – Ele me pertence! Devolvam agora e os deixarei viver!
-Mesmo que o devolvêssemos você nos mataria!- respondeu Lisseu, olhando para Jeffrey –Você não presta, Jeffrey! Não vou entregar-lhe o galeão jamais! – acrescentou jogando o carro para cima do automóvil do bandido, que teve de desviar e quase perdeu o controle –Prometi ao seu irmão que você nunca colocaria as mãos no ouro!- gritou, aproximando-se dele novamente - Você não passa de um vil assassino!...
    Lisseu pissou mais uma vez o acelerador, num último esforço, e o carro reagiu, deixando Jeffrey momentáneamente para trás. Então escutaram uns estampidos e alguma coisa passou assubiando ao lado do carro. Lisseu olhou pelo retrovisor e viu Jeffrey com meio corpo para fora do seu veículo com uma arma em suas mãos.
    -Esse cara está completamente desquiciado!...- murmurou, tentado acelerar –Clementine, abaixe-se! Ele está atirando contra nós!... Fique deitada no banco!- ordenou, começando a ziguezaguear novamente para esquivar os disparos.
Clementine obedeceu e se abaixou, agarrando fortemente o “galeão” contra seu corpo. Tremia descontroladamente e as lágrimas escorriam pelas suas faces, mas tentava desesperadamente não entrar empânico. Sem perceber, comecou a rezar em voz baixa. Agora, seu filmede Hollywood estava ficando realista demais e o único que quería era sair dali.
    Aos poucos, Jeffrey estava alcançando-os. Evidentemente, seu carro era muito mais potente e mesmo se Lisseu acelerava seu Ford, tinha certeza de que o assassino acabaría por pegá-los. Então percebeu que era mesmo o fim de tudo. Nao adiantava resistir mais. Jeffrey botaria as mãos no “galeão”, pegaria a fortuna que Haumphrey deixara para Clementine, torraria tudo e ainda assassinaria os dois… Numa reação instintiva, Lisseu relaxou as mãos sobre o volante e abaixou a cabeça. Nao tinham mais para onde fugir.
Logo à frente, apareceu uma curva fechada. Lisseu olhou para o céu. Estava azul e limpo, e bandos de pássaros o atravessavam à procura dos grãos que tinham sobrado da colheita. Era lindo, pensou… Mas por que reparava nestas coisas bem agora, quando estava prestes a morrer?... Podia escutar claramente as gargalhadas de Jeffrey dentro de seu automóvel, quase encostado no dele. É, ao que tudo indicava, a sua vitória estava garantida. Mais uma vez iria conseguir o que queria.
- O “galeão” é meu! – gritou Jeffrey, tirando as mãos do volante e abrindo os braços para comemorar. Sem perceber, passou para a pista contrária.
    E antes de que tivesse tempo de dar-se conta, surgiu da curva um enorme caminhão tanque, que veio direto de encontro ao seu carro. Lisseu freiou bruscamente, saindo da pista para o meio fio, e Clementine levou as mãos ao rosto. Escutou-se o histérico apito do caminhão e um grito  vindo do carro de Jeffrey, que tentou uma desesperada manobra de última hora. Porém, tudo foi em vão. O automóvel entrou violentamente embaixo do caminhão; toda a parte superior foi arrancada e transformada em sucata. O caminhão veio frear algunas dezenas de metros mais adiante, arrastando o carro de Jeffrey em seu pára-choques. Quando parou, o motorista desceu de um pulo e correu para um encostamento, protegendo-se entre umas pedras. Aos poucos segundos, o caminhão explodiu, fazendo um estrondo ensurdecedor e levantando labaredas e imensas nuvens de fumaca preta. O carro embaixo dele era uma bola de fogo… Jeffrey estava morto… Clementine já podia respirar aliviada, não tinha mais o que temer.
Uma vez que as investigacões e depoimentos foram encerrados, ela e Lisseu foram até o banco em Paris, retiraram todo o ouro e, num gesto de gratidão e confiança, Clementine lhe ofereceu a administração do dinheiro, coisa que Lisseu aceitou de muito bom grau. De certa forma, continuava ajudando seu amigo Haumphrey, tal como prometera. Depois de algunas pesquisas e estudos, decidiram que valia a pena o investir em algo que Clementine sempre havia sonhado.
Agora, ela era dona do seu próprio estúdio em Hollywood: o “Baker Studios S/A”, que estrearia um dos primeiros filmes falados da história do cinema. Era uma aposta certeira, dizia Clementine, apesar das críticas e desconfiancas do resto da gente do ramo. E ela estava com a razão.
Além de administrar a fortuna de Clementine com sabedoria e astúcia, Lisseu Pasteur recebeu uma porcentagem em dinheiro por tê-la ajudado. Na verdade, por ter salvo a sua vida, o que não era pouco.
    As amigas de Clementine, as vedetes do Cabaré da rua Hilzéquio de Queiroz, número 412, foram chamadas para serem dançarinas em seus filmes em Hollywood. E ao senhor Vespúcio, que tinha socorrido ela naquela terrível noite do assalto, o botou para trabalhar na portaría do seu estúdio, entao o velho bilheteiro se deliciava com a entrada e saída constante das grandes estrelas.
    E o magnata beberrão?...Bem... Ele continua no Rio de Janeiro, em algum outro cabaré qualquer, afogando a sua saudade de Clementine em copos e mais copos de uísque e Martini branco.
FIM


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